30 de outubro de 2006

PASSIVIDADE VOCACIONAL

Perante um júri popular inerte e uma platéia ainda mais embasbacada, a vítima declarava em plenos pulmões para quem quisesse ouvir, gravar e reproduzir nas mídias afins. Ela tinha a aparência frágil, um olhar manso, a voz aguda e baixa. Mas sua decisão ao falar era flagrante. Dizia então, a pobre senhorita. “Eu deixei. Eu quis assim.”. Diante de um alarido ovacionado, ela prosseguia. “Ele não tem culpa de nada. Fui eu quem provocou tudo isso.”. O juiz, na sua experiência quase egípcia, se engasgou com a própria saliva. O escrivão trançou os dedos de uma forma que nem uma palavra mais saia de sua velha máquina. A mãe da vítima, em estado de choque, foi levada ás pressas para o hospital mais próximo, enquanto o tio regozijava-se “Essa aí nunca me enganou”. Como se não bastasse tamanha pusilanimidade, a menina complementou com um ar patético, “Se houver de novo, eu deixo. Tantas quantas quiser”. O juiz encerrou a sessão com seu martelo definitivo, já sem paciência para escutar o resto. Terminou assim, sem um veredicto, sem a opinião dos júris. O réu saiu do tribunal caminhando sem que ninguém o tocasse. Foi pra rua fumar um cigarro de uma brasa torrida.

Essa cena acima é o que chamo de verossimilhança mórbida. Talvez não me entendam, por isso vou tentar explicar. A vitima, o réu, o júri, o juiz, a mãe, o tio, todos existem de verdade. Possuem pele, osso, cara e pêlos nos dedos. Cada um no seu universo, com sua história, seus traumas, suas alegrias, suas vidas. Fisicamente eles nunca se encontraram. O que houve foi um encontro de consciências, de almas. Creio estar sendo ainda evasivo. Tentarei ser mais preciso.

O crime em pauta é um estupro. Considerado hediondo pela lei e pelo senso comum. Desde há muito, tido como uma violação do bem sagrado dos limites de liberdade. Um estuprador é a escória social. Ele concentra em si tudo que há de mais pervertido e obsceno em um ser humano. Aqui ele seria perfeitamente condenado e levado para as celas imundas e abarrotadas de tarados em potencial. Mas esse criminoso saiu indelével, foi para a esquina fumar seu cigarro. A estuprada foi para casa com um senso de justiça insofismável. Afinal, se houve consentimento, não há crime. O estupro consentido é o crime sem criminosos.

Creio ter chegado ao ponto que gostaria. No ultimo domingo nós absolvemos com louvores o estuprador. E ele se foi acender o cigarro com a chama da nossa aquiescência, e a brasa brilhou como se fora uma luz na escuridão. E o estuprador fumou até a gimba o cigarro da nossa passividade. Nós, os estuprados, gostamos do que vimos. Sentimos o mesmo prazer masoquista da vítima supracitada. E ainda complementamos patéticamente: “Queremos mais”.

Agora não há juiz, não há júri que consiga impedir o estuprador de sair porta á fora sem maiores entraves. Pois, eu repito, no consentimento não há crime. Não nos importamos se nossa mãe história tenha tido um mal súbito no momento do sufrágio. A decisão está tomada e é irreversível e cruel.

Somos o povo já deflorado, que se acostumou com os estupros históricos e não nos chocamos com tal constrangimento. Essa idéia de crime e castigo, de culpados na cadeia é coisa do tempo dos nossos avós. Hoje em dia tornou-se tudo uma sopa única, massificada. E como tinha razão aquele tio sardônico. Esse povo continua o mesmo. Não engana mais a ninguém.

6 comentários:

Anônimo disse...

Grande, PC! Parabéns, cara! Ótima iniciativa o Blog!
Gosto muito da sua forma de escrever! Parabéns novamente!
Continua nos presenteando com seus escritos!!
Abraço!!

Anônimo disse...

Bela metáfora. Realmente nosso povo não muda, apesar das barbaridades que acontecem, não há reação.
Gosto muito das suas crônicas. Elas tinham de ser publicadas para o Brasil todo ler.
Bjos e parabéns.

Anônimo disse...

O juiz pensa: "dia perdido"... o réu pensa: "ganhei o dia"... e a vítima pensa: " e eu gostei"!!!

deveria ter pensado antes de ter feito um B.O.!!!

que estupro é um crime bárbaro é... hediondo não!!!!

Anônimo disse...

vale aqui dizer que:

O que vale dizer que somente caracterizam-se como hediondos o estupro e o atentado violento ao pudor quando cometidos mediante violência real, afastados, assim, da definição legal de hediondos, quando praticados com presunção de violência (Art. 224 do Código Penal).


portanto, neste caso, não é hediondo!!!

Anônimo disse...

ácido!!!

e os advogados do diabo, vencem mais uma vez!!

saravá!!

PC keep walking!!

Anônimo disse...

Uma analogia genial com os últimos acontecimentos do Brasil...
Um país sem memória, que se deixou levar pela reeleição...
Uma prova de que os delitos que aconteceram valeram a pena...