O ano era 1985 e o Brasil esperava por um milagre, um mártir. Não era Roque Santeiro que fazia sucesso no horário nobre. Ah as novelas de antigamente! Possuíam a magia de serem assistidas na casa da minha tia Ana, enquanto os adultos jogavam baralho na cozinha. E eu me arrepiava ao escutar Zé Ramalho cantar guturalmente sempre que surgia o lobisomem na cidade de Asa Branca.
Mas o santo o qual me refiro era Tancredo. O mártir da democracia, a luz de esperança depois daqueles tempos recrudescidos da ditadura mílitar. O povo se reunira na rua, nas passeatas em torno de uma frase, de um slogan “Diretas já”. E eu, com cinco anos, já me aventurava no mundo das letras. Óbvio que elas eram ainda apenas letras que formavam palavras. Algo tangível, quase como um brinquedo. E aquela frase era, para mim, um sonho acústico. Gargalhava quando a escutava no programa do Agildo Ribeiro, o qual era uma paródia com os políticos da época.
Mataram Tancredo. Minha irmã, na sua inocência crédula, chorou naquela manhã quando o Brasil tomara conhecimento do assassínio do ultimo grande homem. Mineiro como eu e como toda minha família. Eu, no mundo dos meus cinco anos, vivia em Formiga, e tinha, comigo que era tudo uma brincadeira. Tancredo era um nome. Talvez o mais representativo da minha infância. Ele fazia parte da coleção de nomes fundamentais que todos temos quando se é criança.
Naquela mesma ocasião, Fafá de Belém cantou o Hino Nacional com toda a sua malícia e doçura na interpretação. Fez chorar 130 milhões de brasileiros. (não faço idéia se essa era realmente a população brasileira daquela época. Esse número é meramente ilustrativo.). Naquela época ainda se chorava por um homem público. Talvez tenha sido a ultima vez na história que o Brasil sentira a dor esganiça de se perder um quase presidente.
Tancredo, que eleito fora, não chegou a assumir o poder. Os militares, num derradeiro golpe covarde, mataram-no e simularam sua morte natural. Anunciaram-na em 22 de abril, para que esta se coincidisse com o dia de Tiradentes. Mas Tancredo já estava morto. Ele morrera não só fisicamente, mas sua alma já havia sido trucidada pela extinção de seus ideais. Sua morte foi anterior a si mesma. Tenho para mim que ele não se alimentava de comida como um ser humano normal. Tancredo se alimentava de ideais. Era grande demais para essas coisas prosaicas.
Ele não se elegeu pelo voto direto, mas anunciava a abertura de pleito eleitoral para a eleição do seu sucessor. Era, sem dúvida, a encarnação de um movimento, um ideal. O ultimo grande ideal do brasileiro foi o “Diretas já”. Hoje somos um povo sem ideal, alienados por uma pseudo-democracia, manipulados pelos meios de comunicação em massa.
O ano era de fato 1985, mas deveria ser um ano eterno. Ah se vivêssemos todos os anos um 1985. Época também do surgimento da Legião Urbana, em que Chico Anísio ainda fazia rir. O último ano em que o brasileiro se sentiu de fato uma nação. Cada povo precisa de uma causa para ser um povo. Hoje somos uma sociedade anônima, monopolizados nos apartamentos, dirigidos pelo controle remoto.
Um comentário:
Olá, Paulo! Primeiro aponto duas coincidências, também sou mineiro e possuía, como você, cinco anos em 85! Gostei do texto que faz um paralelo entre o Brasil político, em transformação absoluta, com o brasil musical, onde também surgia uma renovação, com o Rock nacional despontando. Uma crônica interessante e inteligente de um período, ainda ontem, que de certa forma já é página virada de nossa hostória, que tem um prazer sádico de esquecer suas origens, suas lutas, seus percalços! Gostei! Abraços!
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